Ana Baptista
1_ Cordões Umbilicais

Não vai ser possível delimitar um quando, já que a memória e o sonho nem sempre compartilham das nossas convenções sobre o tempo. O onde pode variar - a mente nos transporta a lugares incongruentes que se sobrepõem em um mesmo cenário. Quem, também é impreciso enquanto eu não me descobrir.

Começo, então, pela fecundação? Não… acredito que esta seja, na verdade, a parte final. Me apresento de onde estou: um casulo que não se rompe, uma semente que não brota, um daqueles fetos que não completam a gestação, mas continuam ali, como um corpo estranho ocupando outro corpo, estático em sua crise existencial. Só que por mais de trinta anos.

Uma coisa que me desperta temporariamente deste estado é tentar definir o propósito do sonho. Para especialistas, tem a ver com uma maneira de o cérebro guardar as informações daquele dia/período, alimentando a memória. Mas eu tenho uma vida suspensa, uma memória muda e sonhos extravagantes. Aposto, então, minha “cura” no sonho como caminho para o conhecimento do inconsciente, que já é o que a gente não entende mesmo. Freud Wins.



É dia, estou no trabalho, apesar de não reconhecer muitas coisas no ambiente. Preciso ir ao banheiro, me sinto estranha. Entro na banheira porque sei que há algo de anormal nesse dia, em mim.

Meu corpo começa a expelir meu endométrio vagarosamente. Delicados córregos de sangue descem, traçando linhas até o ralo, contrastando sua cor e textura contra o branco liso. Observo calma, até que contrações anunciam a nova etapa.

Útero, trompas, ovários. Tudo desce aos pedaços, em vômitos incontroláveis.

Agora noto que o banheiro tem paredes de vidro, e todos podem me observar. Na verdade, há algum desdém por parte dos desconhecidos colegas de trabalho, que passam, esboçam nojo, mas prosseguem a seus destinos. Não me importo com seus julgamentos, mas não estou exatamente confortável com a exposição. Uma mulher vem me ajudar, uma enfermeira. Senti que era uma amiga minha, apesar de também não conseguir reconhecê-la.

Sinto como se devesse estar horrorizada, histérica. Mas o que tenho mesmo é curiosidade. Apesar de pensar em tudo o que perdia, não era como se eu achasse que iria precisar dessas partes. Nunca desejei gerar outro ser, eu mesma ainda sou um óvulo de uma gravidez ectópica, com alto potencial de destruição do hospedeiro.

Mais contrações. Estou muda todo esse tempo, apenas sinto as fortes dores e aguardo um pouco ansiosa. “Nascem” de mim - são também expelidos - cordões umbilicais. Incontáveis, sozinhos, sem o que nutrir, sem motivos para suas existências. Apenas cordões, agora soltos.

Preciso deixar tudo limpo, desentupir os ralos para o próximo usuário.

Bernardo pausou a tela.
2_Oneiroscopia

Desprendimentos, separações, liberdade, morte, desamparo. Tudo isso já tinha me ocorrido bem antes que meu psiquiatra tivesse começado a Oneiroscopia, e eu acreditava que nada de novo poderia sair dali. Desta vez, o sonho havia sido bem claro.

- Temos bastante material aqui, Isadora. Eu gostaria de começar pelo fim. Por quê você acha que sentiu necessidade de limpar o banheiro?

Foi um questionamento inesperado, precisei de alguns minutos. Duas pessoas assistindo ao mesmo filme podem ter impressões e interpretações bastante diferentes e eu não havia dado a menor importância a essa cena.

- É só uma coisa que eu tenho. Se entro em um banheiro e o vaso está todo molhado, preciso secar para a outra pessoa que vai entrar não achar que fui eu. Eu me importo com essas bobagens, você sabe. Não tem nada mais profundo aí, apesar de agora você estar me fazendo achar que sim.

- Quero que você pense sobre o que está me dizendo.

Pensar. Desde que comecei com a nova terapia, me pergunto se faz algum sentido racionalizar o sonho. Se nem mesmo os neurocientistas desvendaram de todo o que é e para quê serve, às vezes parece bastante inútil. Mas sempre achei meus sonhos simbólicos demais e a ideia de ter uma pessoa especializada vendo o que eu vejo em uma tela me trazia esperanças de me descobrir. De ser descoberta.

Durante anos procurei uma palavra para me definir. Não exatamente uma unidade da língua escrita, situada entre dois espaços em branco, ou entre espaço em branco e sinal de pontuação. Mas em um signo. Um sintoma, um prenúncio de um conteúdo. Não apenas para me rotular, restringir, caber em mim. Mas também para ter uma sensação de pertencimento explicado, textual, compreensível, ainda que ambíguo, como são quase todas as palavras. Me apropriei de muitas temporariamente, todas abandonadas por não se sustentarem na minha espinha identitária. Então, em um delírio ébrio alheio, dolorosamente me deram a palavra medíocre.

Medíocre, mediano, caminho do meio. Equilíbrio.

Assim se iniciou um novo período de comportamento a uma palavra. Medíocre como Hans Castorp, na Montanha Mágica. A mesma expressão tola, sonolenta, a boca entreaberta, a cabeça inclinada para um ombro. O torpor, a vida horizontal, a procrastinação.

Uma geração de grandes batalhas e conquistas me deu vida. E eu acordei em uma guerra já vencida, com todos os louros. Não precisei entrar em campo algum, mas ainda assim vesti uma pesada armadura e o que acontece é que não consigo me mover e nem sei para que lado carregá-la. Ser medíocre é, então, a opção viável e apaziguadora.

O que é pueril corre no vento. Insignificante, incapturável, livre. O que é profundo pesa, é preso, é âncora.